Em hora do Komba do Roque Santeiro - Justino Pinto de Andrade
1. Como era previsível, o encerramento do Mercado Roque Santeiro tornou-se um facto demasiado controverso. De um lado, colocam-se todos aqueles que o julgavam um cancro incrustado nos arredores da nossa cidade – não reconhecendo, pois, qualquer razão para a sua manutenção. Do outro lado, estão os que o olhavam tão-somente como a fonte de subsistência de inúmeras famílias – dando, assim, menor importância às restantes dimensões que o problema envolve.
Por: Justino Pinto de Andrade
Fonte: SA
2. Porém, o Roque Santeiro é comummente conhecido pela precariedade das instalações; pela falta de higiene do meio; pela gritante imagem de degradação; pelo tipo de comércio que alimentou (convivendo lado a lado o comércio legal com o comércio ilegal); pelos riscos de assalto que corriam quer os vendedores, quer os compradores; pela disseminação de certas práticas imorais que lhe emprestaram uma conotação negativa.
3. Durante a sua existência de cerca de 20 anos, o Roque Santeiro foi também muito referenciado pela incapacidade de se controlar a qualidade dos bens lá vendidos e de alguns serviços lá prestados. Enfim, podemos dizer que o Roque Santeiro foi uma amálgama de várias coisas, nem todas muito boas. Tornou-se, por isso, uma má referência da nossa cidade, mas, igualmente, um espelho da capacidade de sobrevivência dos angolanos, sempre preparados para acharem soluções expeditas, quando confrontados com as adversidades.
4. O Roque Santeiro nasceu como uma consequência da guerra, uma guerra que lançou milhões na busca de novas e mais seguras paragens. Todos nós nos lembramos da forma desordenada como se encheram as cidades, com gente fugida do interior, gente desenraizada, sem capacidade de sobrevivência, a não ser por meio da venda informal, ou da prestação de serviços de baixa complexidade.
5. Sem soluções alternativas – porque confrontados com outras prioridades – as autoridades políticas e administrativas deixaram que aquele verdadeiro polvo crescesse sem controlo. Tornou-se, assim, o Roque Santeiro no maior mercado informal a céu aberto que se conhece no nosso continente. Em consequência, transformou-se também num “local de peregrinação” para visitantes e para os jornalistas estrangeiros mais ávidos de uma reportagem exótica, mesmo que degradante, em busca de imagens capazes de ilustrar os engenhosos esquemas de sobrevivência de que o nosso povo se foi socorrendo nos momentos de grande aflição.
6. Mas houve também quem tivesse visto o Mercado Roque Santeiro com outros olhos, numa perspectiva mais benevolente: como um espaço de convivência multi-étnica e multi-rácica. Para esses, a dimensão comercial foi relegada para segundo plano. Aos seus olhos, tornou-se mais evidente a vertente sociológica, matizada pela nossa capacidade integradora.
7. Nos últimos anos, até chineses, vietnamitas, senegaleses, marroquinos, libaneses, e gentes das mais longínquas proveniências lá se fixaram como comerciantes, como prestadores de serviços, falando as suas línguas maternas, arranhado o português... O Mercado Roque Santeiro ganhou, assim, um estatuto internacional e multi-cultural. Tornou-se simbólico, mesmo referencial – quer no bem, quer no mal.
8. O Governo Provincial de Luanda anunciou que, finalmente, chegou o seu fim definitivo. A maioria dos seus vendedores está a ser encaminhado para o Mercado Municipal do Panguila. Outros poderão ir para as praças de bairro que existem. O Governo Provincial de Luanda disse ainda que os vendedores transferidos para as praças, fazem-no por vontade própria, uma vontade que terá sido expressa aquando do cadastramento realizado pela actual Administração do Mercado Roque Santeiro. Com as transferências, todos eles beneficiariam de “melhores condições organizativas, de segurança, de habitabilidade, comodidade e higiosanitárias”. Ganharia, pois, “a saúde pública, o saneamento do meio e os direitos do consumidor”.
9. O restante do comunicado exarado pelo Governo Provincial de Luanda tratou praticamente de questões de ordem técnica, muito ligadas ao modo como se processaria a transferência, feita de acordo com os distintos sectores em que se enquadravam os vendedores.
10. É de assinalar que, ao longo do tempo, a postura do Governo Provincial de Luanda evoluiu, no que diz respeito ao encerramento do Roque Santeiro, conforme está espelhado nesse comunicado. O Governo Provincial passou, pois, a admitir que quem não queira ir mercadejar no Panguila o poderá fazer em outras praças espalhadas pela cidade. Trata-se, claramente, de um avanço, da flexibilidade necessária na abordagem desse tão complexo problema.
11. Reconhecendo embora tratar-se de um avanço (mais por reacção positiva aos diversos apelos, protestos e críticas vindas de todos os lados), a posição actual do Governo Provincial de Luanda não deixa de espelhar uma contradição. A realidade presente mostra-nos que as praças de bairro onde também se autoriza que se instalem alguns dos vendedores do Roque Santeiro serão em número e com dimensão insuficientes para albergar o crescente número de vendedores informais que se adivinha virem a existir, muitos dos quais foram desalojados de outras praças. Assim, irá aumentar ainda mais o número dos ambulantes.
12. Pessoalmente, afirmei em outras ocasiões que não sou contra a eliminação do Mercado Roque Santeiro, mesmo reconhecendo que o seu encerramento acarretará incómodos para muitos daqueles que fizeram desse espaço a sua fonte de rendimentos – em especial, quem lá praticava comércio honesto.
13. Penso que a necessidade de regularização da nossa vida urbana exige sacrifícios de todos, pelo que não nos devemos render apenas aos aspectos sentimentais. Não faz qualquer sentido ficarmos indiferentes à falta de qualidade de vida, à degradação do meio.
14. Sou pela modernidade, desde que ela não atropele os nossos direitos mais elementares. Sou pela criação de condições de trabalho e da habitação condignas. Sou, igualmente, por uma arquitectura urbana que leve em linha de conta a necessidade de as pessoas se sentirem cómodas nos seus locais de habitação. Por isso, tenho defendido publicamente a ideia de que determinado tipo de abastecimento deve ser realizado na proximidade dos locais onde vivemos. Isso faz-se criando muitos pequenos mercados nos bairros, mercados de proximidade, que evitem grandes deslocações, e que nos reduzam a necessidade de fazermos grandes stocks de bens, muitos deles perecíveis.
15. O Mercado do Panguila deveria ser uma espécie de mercado abastecedor, grossista, onde os comerciantes se iriam abastecer para a revenda. O abastecimento para consumo imediato deve localizar-se o mais próximo possível das nossas casas, para não termos que transformar as nossas despensas em verdadeiros armazéns, nem atafulharmos as nossas arcas frigoríficas como se fôssemos todos revendedores.
16. Do meu ponto de vista, o Governo Provincial errou ainda mais porque forçou a transferência dos vendedores para o Panguila sem ter em atenção a questão do trânsito já caótico, e que ainda piorará. Deveriam ter deixado terminar as obras que se estão a realizar na única estrada que lhe dá acesso. Esqueceram-se também que o povo do Sambizanga deveria ter sido contemplado com um mercado para se abastecer dos bens essenciais, antes de apagarem definitivamente do mapa o Roque Santeiro.
17. A pressa de verem nascer no local onde funcionou o Roque Santeiro um milionário projecto imobiliário fê-los esquecer que a modernidade só faz sentido quando se traduz em benefício geral. Ela não pode apenas dar satisfação aos interesses imediatos de alguns, os eternos privilegiados.