O batuque da guerra fria - Vincente Pinto de Andrade
1 - Creio que a maior parte da opinião pública nacional e estrangeira terá ficado surpreendida pelo conteúdo e tom revelados pelas duas últimas intervenções de órgãos e figuras importantes do MPLA. O Bureau Político do MPLA, na reunião do passado dia três de Setembro, emitiu um comunicado, com uma linguagem do tempo da “guerra quente”, onde acusa, sem as nomear, organizações e instituições estrangeiras, bem como organizações e cidadãos angolanos de o quererem derrotar nas próximas eleições gerais. Poucos dias depois, o seu Secretário para a Informação e Propaganda, Rui Luís Falcão Pinto de Andrade, convocou alguns jornalistas angolanos para um encontro na sede do MPLA, onde apontou e acusou a UNITA e o seu presidente, Isaías Samakuva, de estarem a fazer apelos à “desobediência civil”, através de vários meios, nomeadamente a Rádio Despertar.
2 - A linguagem e o tom das duas intervenções chocaram-me profundamente. Primeiro, fizeram-me lembrar o “tempo da caça às bruxas”, que, nos primeiros anos da nossa Independência, levou milhares de jovens angolanos a serem presos, torturados e fuzilados, acusados de estarem “ao serviço de países, organizações e instituições estrangeiros”. Segundo, porque, desta vez, o “porta-voz da desgraça” é um membro da minha família. Nutro uma profunda estima e amizade por Rui Luís Falcão Pinto de Andrade. O Rui e eu pertencemos a uma família que, durante séculos, tem sido respeitada e estimada, não por contribuir para desgraças, mas sim por se ter mantido firme, durante várias gerações, na luta pela liberdade e harmonia entre os angolanos. Este facto orgulha-me e é a “herança” que os Pinto de Andrade têm deixado às gerações que se vão sucedendo. A herança que nos tem sido legada pelos nossos antepassados é constituída por bens espirituais e morais e não por bens materiais. O nosso papel nunca foi o de Cassandra. A luta pela liberdade, pela dignidade e pela independência do nosso povo e de outros povos africanos irmãos custou-nos a prisão, a deportação e o exílio. Valeu a pena. A luta por mais uma desgraça para o nosso povo não a vale a pena. Por isso é que entendo que o debate político e de ideias deve prevalecer e substituir, definitivamente, os ódios e os confrontos físicos do passado.
3 - O MPLA, durante a campanha para as eleições legislativas de 2008, fez promessas eleitorais que se sabia serem exageradas. Prometeu um milhão de casas e um milhão e trezentos mil novos postos de trabalho. Desde 2002, o Governo promoveu a reconstrução e construção de estradas, pontes, postos médicos, hospitais e escolas. A equipa económica do Governo, durante o período de 2002 a 2007, conseguiu garantir a estabilidade macroeconómica necessária para mudar o rumo da nossa economia. Os dividendos da paz foram importantes para relançar a esperança e o optimismo no seio das famílias angolanas. O MPLA foi a exame e passou. Todas as benfeitorias e melhorias foram atribuídas ao MPLA. O povo angolano deu ao MPLA uma vitória convincente. Mas não passou ao MPLA um cheque em branco por tempo indeterminado.
4 - O MPLA não tem razão para acusar os “outros” de serem os responsáveis por aquilo que tem feito e desfeito, nos últimos dois anos. A crise financeira internacional deflagrou nos Estados Unidos da América em 2007. Mas os dirigentes angolanos, com o apoio de figuras estrangeiras respeitáveis e credíveis, desvalorizaram o impacto que essa crise teria no nosso País; adoptaram medidas no domínio cambial e monetário que, não só ajudaram a contrair a nossa economia, mas também conduziram à falência de uma série de empresas angolanas. Além disso, continuam a não criar condições para melhorar o ambiente de negócios no nosso País. Os empresários angolanos continuam a queixar-se dos obstáculos constantes à sua actividade. O investimento directo estrangeiro não aflui nos montantes e com a qualidade que são necessários para promover o crescimento económico sustentável. Quem manda demolir as casas de milhares de angolanos pobres e em troca pouco ou nada lhes dá, é o Governo. Por isso, o Governo só se pode queixar de si mesmo. E o MPLA tem que ter consciência que, em 2008, a maioria de votos que recebeu foi um voto de confiança. Se hoje há poucas obras para mostrar, é porque o dinheiro público foi mal utilizado e muitas das obras realizadas foram e estão a ser mal feitas. Por isso, o MPLA só se pode queixar de si mesmo. Não deve inventar “bodes expiatórios”. Além disso, a legislatura vai a meio. Ainda há tempo para trabalhar. Se não melhorar a governação do País, a “mitigação da diferença nas próximas eleições” será um facto. Em democracia, ganhar eleições legislativas com cerca de 82 por cento dos votos é raríssimo. É anormal. A vitória do MPLA em 2008 foi anormal. O povo depositou todas as esperanças no MPLA. Hoje, o MPLA tem estado a desbaratar esse capital de esperança. Ou, melhor, o Governo do MPLA não está a trabalhar bem. Um exemplo do desnorte do Governo é o facto de, neste momento, as questões económicas e financeiras serem abordadas pelo Dr. Carlos Feijó, perante a postura silenciosa e discreta do Doutor Manuel Nunes Júnior.
5 - Do ponto de vista estatístico, as eleições gerais de 1992 e de 2008 foram claramente participadas. A motivação política para a ida às urnas foi muito forte: o futuro de Angola como Nação e como Estado pareceu estar em jogo. Hoje, o sentimento geral que transparece dos actos e das palavras dos angolanos é que, nas próximas eleições, estarão em jogo, não só as políticas económicas e sociais, mas também os estilos de liderança e a representação parlamentar do espectro nacional. Mas as mudanças demográficas, no nosso País, quer em número, quer em distribuição espacial, são mais do que evidentes e terão, nos próximos anos, acentuadas implicações de natureza política, social, económica e cultural.
6 - O caso de Moçambique deve servir-nos de lição, quanto ao significado da abstenção. Nas duas últimas eleições legislativas e presidenciais, a abstenção passou de 40 por cento para 60 por cento. Isto é, o povo moçambicano mostrou desconfiança crescente em relação aos seus políticos e partidos. Essa abstenção deveria ter sido interpretada como um sinal amarelo, um aviso de que o povo estava descontente. A FRELIMO ganhou, tendo reforçado o seu peso no parlamento. Mas não ganhou o coração da maioria dos potenciais eleitores moçambicanos. A revolta de Maputo, desencadeada por cidadãos anónimos, em protesto contra o aumento generalizado dos preços, mostra que, quando não há espaço para debate e discussão nos parlamentos, as ruas tornam-se, de repente, no palco principal da vida política. Felizmente, o Presidente Armando Guebuza teve o bom senso de reavaliar a situação e rever as decisões tomadas.
7 - O nosso País precisa de debate amplo, a todos os níveis. Ninguém deve temer o debate. Nos termos da Constituição de Angola, recentemente aprovada e em vigor, o Presidente da República, na qualidade de Chefe do Executivo, tornou-se o eixo das atenções: é o centro nevrálgico do poder. Não é de estranhar, portanto, que se torne, cada vez, o alvo das críticas de que o Governo seja, ou venha a ser, alvo. Não pode, nem deve, delegar para terceiros o protagonismo que lhe cabe assumir. O sistema de governo parlamentar-presidencial é uma arma de dois gumes. Por um lado, dá mais poderes ao Presidente; por outro, caso não haja maioria absoluta no Parlamento, obrigará o titular do poder executivo a dialogar e a concertar-se com as outras forças políticas. O MPLA tem que se preparar para a concertação aberta e franca com os outros partidos políticos. E também tem que se habituar à ideia que, em democracia, as vitórias e as derrotas são sempre precárias. Não vale a pena inventarem-se “bodes expiatórios”, nem apocalipses. A opção patriótica para o momento que estamos a viver consiste em estimular o interesse dos cidadãos pela política. Intensificar o debate de ideias. Dar espaço mediático à batalha de ideias. Dar visibilidade aos actores políticos, de modo a facilitar a escolha por parte dos eleitores. O respeito da pluralidade e da diversidade é uma das exigências fundamentais da vida e uma das condições para que as eleições sejam livres, justas e transparentes.
8 - O respeito pela diversidade em Angola significa que a democracia não pode ser identificada com a ditadura da maioria sobre as minorias; ela deve comportar o direito das minorias e permitir a expressão das ideias, mesmo quando nos parecem, em determinados momentos históricos, heréticas. A consolidação da democracia pressupõe, por isso, o exercício amplo e profundo das liberdades e a assunção de responsabilidades. Quanto mais não seja, porque, na democracia representativa, o povo-cidadão transfere a sua soberania para os eleitos, por períodos bem definidos. Esta transferência de soberania do povo-cidadão para os eleitos constitui uma autolimitação do primeiro e a entrega da capacidade de decisão aos últimos.
Fonte: SA
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